Carlos Alberto Dória é, hoje, uma das principais mentes a pensar a gastronomia brasileira. O sociólogo, que assina o blog e-Boca Livre — que recentemente virou livro — e dirige o Centro de Cultura Culinária Câmara Cascudo (C5), tornou-se referência em estudos sobre a nossa culinária, criticando-a e analisando-a com desenvoltura, propriedade e até uma certa marra (é grande a implicância com os modismos) que poucos se arriscam a ter.
Em tempos de efervescência culinária (afinal, hoje em dia todo mundo quer ser chef!) e hipervalorização de determinados ingredientes, o trabalho de Dória se faz essencial e direciona o nosso olhar para dentro de casa, para redescobrir (ou descobrir mesmo) as raízes históricas e também pensar em novas propostas de renovação da gastronomia nacional.
Em seu mais celebrado livro, “Formação da Culinária Brasileira”, o autor reúne sete artigos e tem como ponto de partida um ensaio originalmente escrito em 2008 para um projeto do Senac, lançado como livro em 2009. Revisto e atualizado, é, sem dúvida, o mais fascinante na minha opinião — Dória nos pega pela mão e dá um passeio até as origens da nossa culinária, porém, percorrendo caminhos bem diferentes do quais estamos acostumados.
Para ele, não houve uma contribuição efetiva de índios e negros na construção do nosso cardápio, uma vez que “não há criatividade e inventividade sem liberdade”. Dos índios, o europeu escolheu o que seria adaptado à sua dieta ou não (sorte do milho e da mandioca); os escravos, por sua vez, não viviam em liberdade para escolher ingredientes e criar novos pratos. Até alimentos de origem africana, como o quiabo e o dendê, só foram trazidos pelos portugueses por interesses comerciais e não representam necessariamente “as raízes africanas presente nos nossos pratos”.
Em “A emergência dos sabores regionais”, Dória critica o regionalismo da nossa gastronomia, que “só teve o sentido de reforçar a discussão sobre o regionalismo político […] e, depois, deu-se a sua caricaturização para efeitos de marketing turístico”. Ele também destaca a diferença conceitual entre o terroir francês e a tipicidade dos nossos pratos, e defende uma nova concepção, mais baseada em territorialidade e cultura (cozinha caipira, cozinha amazônica, cozinha do Recôncavo…), e menos restrita aos guetos regionais.
No último capítulo, o autor é taxativo ao afirmar que o Brasil, apesar de estar com pinta de bola da vez, ainda precisa comer muito arroz com feijão para ganhar reconhecimento e personalidade, como as celebradas e renovadas culinárias peruana e espanhola. Ele também faz uma análise de perfil de restaurantes brasileiros inovadores e os lista em curiosas categorias, como “Naïf”, “Etnográfico” e “Juscelinista”.
Fechando o livro, seis propostas de renovação são apresentadas, dentre elas renunciar aos “ditames da tradição”, libertando chefs para buscar linhas alternativas de interpretação da nossa identidade; dedicar-se e trabalhar em um inventário de ingredientes da cozinha brasileira; e garantir legibilidade nos pratos, de modo que possamos apreciá-los conscientemente.
O que torna “Formação da culinária brasileira” tão interessante é a forma como Dória domina o assunto e traduz suas ideias e uma narrativa leve e sedutora. De certa forma, seus pensamentos dão sequência aos caminhos abertos por Câmara Cascudo e Paulo Freire, e nos fazem refletir sobre quem somos — ou o que buscamos ser — através da nossa alimentação. Enfim, uma fonte de consulta essencial para quem curte ou trabalha com gastronomia.
Texto de Guilherme Mattoso.