Por Thiago Nasser e Maria Schatovsky
Parece que foi ontem que recebemos uma pequena sacola vermelha com patês de campagne, en croûte e de foie. Segundo relatos, fazia semanas que os responsáveis pelas iguarias faziam peregrinações pelas nossas feiras para fazer as amostras chegarem às mãos da nossa equipe. Faz parte do nosso ofício estar sempre em busca da comida boa, local e justa e saber o que andam aprontando os pequenos empreendedores gastronômicos cariocas. Toda chegada de amostra nos enche de curiosidade e apreensão. No caso dos conteúdos da sacolinha vermelha ficamos ainda mais ouriçados porque, desde a mudança para o exterior de produtoras históricas da Junta Local – a Deli Magui -, sentíamos falta de uma boa e autêntica charcutaria. Quando nossa equipe de comunidade abocanhou as amostras, não restou dúvida: o responsável pelas aquelas iguarias tinha que fazer parte da nossa comunidade. Chamamos para uma conversa e assim começou o nosso testemunho de uma das histórias mais bonitas de evolução e superação que já passaram pela Junta Local – e é uma história que está apenas começando.
O responsável pelo conteúdo da sacola vermelha se chamava Pedro Attayde. E quem sempre o apoia e é parte fundamental do negócio é Valéria, sua mãe (foi ela a responsável pela peregrinação às feiras, pelos produtos minuciosamente embalados, entre outras coisas). Pedro criou a Cochon Rouge em 2021 e a definiu como “uma charcutaria francesa muito, muito pequena no Rio de Janeiro”. A noção é muito romântica, mas a realidade é que uma micro-charcutaria em que todo o processo é artesanal e que toda semana é possível criar e experimentar vai totalmente na contramão da grande indústria, e isso inclui a legislação, pensada para os grandes e que torna quase proibitivo esse modelo. E por anos acompanhamos Pedro e Valéria levando a Cochon para as feiras, conquistando uma clientela cativa, deixando cariocas (e franceses) encantados por suas criações, tudo isso enquanto viviam as agruras de tornar o empreendimento viável legalmente (o que significa também financeiramente), sem perder sua essência.
Semana passada, abril de 2024, visitamos o novo espaço da Cochon Rouge, que de pequeno não tem nada e que ostenta na parede o selo de inspeção municipal que autoriza sua comercialização. Com isso, o projeto irá conquistar cada vez mais espaço em prateleiras e paladares na cidade – e, claro, continuará nas nossas feiras e eventos.
Vamos retraçar aqui todo o caminho que liga estes dois momentos. Comecemos pela história do Pedro, que foi daqueles cozinheiros que mergulhou por completo no mundo da gastronomia, ralando desde o salão, cozinha, gerência de grandes redes, até restaurantes premiados. Mas, como muitos que atuam neste ramo de serviço e do setor A&B, uma hora o equilíbrio entre a vida pessoal e profissional foi pesando, e junto com isso, vinha o desejo de expressar sua criatividade, correr riscos e testar novas ideias. Nesse momento dividiu suas chances e suas vontades entre dois empreendimentos: a Po’Boys – que abriu com dois parceiros, fazendo sanduíches no estilo de Nova Orleans, respeitando receitas originais e ingredientes locais – e conquistou muitos fãs nas feiras da Junta Local ao longo dos seus três anos de existência (e que se depender da gente, merece uma noite de revival) e a Cochon Rouge, onde foi aprendendo sozinho – sempre usando alguns vídeos de chefs fazendo preparações como guia – os desafios amanteigados da charcutaria francesa.
Fez alguns testes e quando chegou nas receitas ideais embalou tudo em potinhos em embalagens amarradas com barbante e uma etiqueta e começou a fazer entregas nas tais sacolinhas vermelhas. Família, chefs com quem tinha trabalhado, amigos, cozinheiros, todos foram recebendo algumas amostras para pitacar na mais nova charcutaria carioca. Pedro tinha confiança, mesmo sem nunca ter colocado os pés na França, e sabia que sua charcutaria não devia em nada às melhores casas de lá. Os primeiros provadores deram seu selo de aprovação e logo depois, já selecionado pela Junta Local, seus produtos começaram a fazer sucesso nas nossas feiras e na Sacola da Junta.
Com este sucesso veio a demanda para o crescimento da produção, que passou a ser feita numa cozinha agora somente dedicada a isso. Foi então que as ressalvas começaram a aparecer. O que ele mais escutava era em relação ao tamanho do perrengue que era para montar uma fábrica de charcutaria, os desafios iam desde legalização, burocracia, interpretação da lei, dinheiro, tempo e como fazer isso numa grande cidade, o que era ainda mais difícil que na zona rural, principalmente no Rio de Janeiro.
E aí entramos numa das conversas que mais acontece aqui na Junta Local quando falamos em perrengues do pequeno produtor.
A procedência dos produtos e a transparência em relação a toda a cadeia produtiva, tanto para a seleção de matéria-prima, quanto para a definição de processos produtivos, estão na base da nossa luta por alternativas à industrialização e ao afastamento entre o campo e a mesa. A proximidade entre produtores e consumidores é a forma na qual a Junta Local aposta para promover diálogos, trocas e a confiança de que o produto adquirido realmente possui os atributos descritos. Porém, nem sempre isso é suficiente – para a gente, para o consumidor, e para toda uma cadeia. Os processos de certificação e regularização vêm então como uma forma de garantia necessária para o sistema alimentar, principalmente aquele que busca modos de produção mais sustentáveis em todos os sentidos. Para produtos de origem animal que são destinados ao consumo humano, um dos certificados mais importantes são os selos de inspeção concedidos pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) – que podem ser municipais, estaduais ou federais, se referindo ao espaço geográfico que aquele alimento pode ser comercializado.
Essa regulação e a garantia das certificações é benéfica tanto para quem produz quanto para quem consome. Porém ainda há uma grande barreira para diversos pequenos produtores se adequarem a ela, seja pelos custos envolvidos, seja por questões envolvendo o quanto legislações e as agências responsáveis pela sua implementação e fiscalização estão atentas para os desafios do pequeno produtor. A conformação sanitária é primordial, mas ainda há uma grande dificuldade, pela desatualização das leis e pela falta de diálogo, em se encontrar um caminho para que pequenos produtores com enorme potencial para a inovação e fortalecimento de economias locais, possam se regularizar.
E para a Cochon Rouge não foi diferente. Apesar do desejo, conseguir dar esse passo sempre foi um enorme desafio e o temor de não conseguir dá-lo muitas vezes resultou em paralisia.
Porém, ano passado, em 2023, a Junta Local passou a estar num processo de diálogo mais profundo com a IVISA-RIO (Instituto Municipal de Vigilância Sanitária, Vigilância de Zoonoses e Inspeção Agropecuária) com o intuito de trazer mais informações para a comunidade em termos de boas práticas e adequação às normas existentes. Este diálogo se deu em diferentes níveis. O primeiro deles foi na adequação às feiras, tanto da Junta Local enquanto realizadora, como de produtores individualmente, buscando uma forma de harmonizar os procedimentos burocráticos da SEOP e da IVISA com as características particulares das nossas feiras e eventos (alta recorrência e rotatividade de produtores). Isso envolveu também um treinamento mais intenso de boas práticas através de cursos oferecidos pela IVISA, que passaram a ser obrigatórios para todos produtores da Junta Local .
Em outro nível, conjuntamente com a IVISA, passamos a buscar um espaço de diálogo. A Junta Local passou a atuar de forma mais energética para que produtores evoluíssem no sentido de adequar seus empreendimentos às normas existentes e à obtenção de selos. Por sua vez, a IVISA se mostrou sensível às particularidades do pequeno produtor – que muitas vezes literalmente fugiam desse diálogo -, se colocando com uma orientadora e facilitadora, e buscando na Junta Local o apoio para facilitar esta aproximação.
Nesse caminho houve um episódio muito dramático e representativo deste processo. Estávamos nos preparativos para o Fermenta! e para que tudo saísse nos conformes estávamos buscando todas as autorizações para a realização do evento, o que incluía que cada produtor individualmente solicitasse sua licença. Pedro se viu em um lugar de insegurança, e até cogitou não participar deste evento, mas foi mesmo com este cenário. Este foi um dos momentos definidores para que Pedro decidisse por focar na obtenção do selo, buscando nunca mais se sentir vulnerável assim, ainda mais fazendo um trabalho no qual tinha total confiança. E foi como gestar um filho, um processo longo e às vezes tortuoso, que levou meses, envolveu a construção de uma fábrica com o recrutamento de investidores-admiradores, reuniões de consulta com especialistas e a própria IVISA, com quem percebeu ser possível e necessário o diálogo.
E finalmente o selo e a fábrica saíram. Numa feira do Museu da República, Pedro e Valéria exibiram com orgulho o documento. Um pedaço de papel, mas nós que acompanhamos toda a trajetória, cientes de tudo que isso representava, nos emocionamos juntos com eles.
O selo de inspeção municipal representa novas oportunidades pois o universo de vendas se expande para o varejo além das vendas diretas (ainda que Pedro continue convicto na importância da relação direta com sua clientela). Sabemos que o passo que nosso sistema alimentar ainda precisa dar em relação à transparência das cadeias produtivas é longo e quem sabe ainda teremos certificações que absorvam toda a complexidade do bom, limpo, local e justo.
Dito isso, Pedro nos mostra agora com orgulho, cada pedacinho da sua pequena grande fábrica, aprovada pela Vigilância Sanitária. Aos olhos de quem vê rapidamente pode parecer apenas mais um local estéril, sem cor, onde só se entra com toucas do cabelo aos pés, mas com o Pedro como guia percebemos o quanto é uma grande caixinha de sonhos, feita com com muita suor, raça e colaboração, de gente que faz comida boa, local e justa para gente que come e valoriza comida boa, local e justa. A empolgação de Pedro ao fazer o tour é nítida, sempre destacando o apoio que recebeu da nossa comunidade – seja pela bancada refrigerada que um dia pertenceu ao Vicente e a Diana da Animall – e abrigou muita carne produzida localmente por quem acredita em um sistema alimentar bom, local e justo -, seja pelo freezer com o adesivo do Sorvetiño – que um dia já foi recheado de sorvetes que estimulam a criatividade -, seja pela gente ali, comemorando mais um passo de um produtor que nasceu e cresceu na Junta Local.
Após o tour pela nova fábrica, subimos para o escritório, onde a mãe Valéria, sempre mirando o filho com orgulho, estava presente em seu posto de trabalho mesa-com-computador onde assume tarefas administrativas (apesar de continuar batendo ponto como vendedora nas feiras). Ficamos por ali mais uma hora ouvindo sobre o projeto, e como ele envolve a participação de funcionários que Pedro foi fisgando ao longo dos anos, a preservação da mentalidade de pequeno e artesanal e os desafios de ter um espaço maior e se adequar a legislação para este espaço – e envolveu, inclusive, ter que subir em rapel e andaime para instalar uma tela contra a entrada de pombos.
Foi um Junta Local Vai atípico. Apesar da pouca distância percorrida entre nossa sede e a fábrica da Cochon Rouge, a estrada percorrida por eles, do estalo inicial do projeto até a construção da fábrica, em tão pouco tempo, foi uma das mais longas e bonitas pelas quais já viajamos na Junta Local.