Por Alice Lutz

 “Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir aos céus. Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas.

— O mundo é isso — revelou — Um montão de gente, um mar de fogueirinhas.

Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes, fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo.”  Eduardo Galeano  – O Livro dos Abraços.


Sentei ao pé dos Tatarés, lugar de conexão ao qual recorro quando preciso. Tinha a missão de escrever um texto para encerrar o ano da Junta Local. Máquina apoiada no banquinho. Dedos quicantes nas teclas. Nesse entre, um vento lambeu meu rosto com frescor. Aqui, sentada sobre as raízes de tão belas árvores de galhos tortos, o vento faz a curva de um jeito muito especial. Foi assim, durante o beijo do ar fresco dançante, que fui tomada em pensamento por essa imagem linda descrita por Galeano. O mundo visto pelo homem da aldeia de Neguá que ao subir aos céus reconheceu a vida como um conjunto de fogueiras iluminando a vista, cada uma a seu modo, mas todas em brilho entregando sentido.  

Quase me incomoda reconhecer que talvez este tenha sido um dos anos mais importantes da minha vida. Aqui sentada próxima às raízes da árvore, que habita esse espaço desde bem antes do meu nascimento, vejo o plantado ao longe. Vejo crescer a nossa troca, a nossa relação. Milhos crioulos ultrapassam minha altura, gergelins florescem, feijões trepam nas hastes e abóboras rastejam pelo chão. Sem falar nas hortas todas lotadas de ervas e matos que provavelmente poucos conhecem. Ah, mas se soubessem… remédios para gripe, garganta, fígado, pele, cabeça e tudo mais que for preciso. Até mesmo um bom banho para alma equilibrar. Nos morros, o feijão guandu começa a tomar a paisagem e as mais de 500 pitangueiras que plantei do caroço, ainda pequeninas, seguem firmes. 

Ao escrever e sentir o vento, vejo num lampejo, essa multidão de vida e conhecimento de tempo, nos menores detalhes. São aqueles que toquei através do gergelim e do milho colhido, da palavra em sintonia trocada numa noite de raios e trovões. Do pé dos tatarés minhas raízes se deitam para muito além. 

2020 veio como um vendaval enevoado. No colo nos deixou a incerteza, o exercício de viver como dava, cada dia de uma vez. Encarar o presente. Fomos forçados a ficar cara a cara com o Tempo. Com meus 33 anos eu ainda não tinha compreendido de fato o poder desta entidade.

Registro de nossa última feira de 2020 no dia 8 de março na Tijuca, RJ.

O tempo que passa incerto traz a famosa saudade. Isolados, buscamos encontros em lives como as muitas que fizemos ou cantando, gargalhando, aprendendo com Teresa Cristina. Nos encontramos em telas e quando sem a proteção delas, luvas, máscaras, álcool e o medo de respirar. 

A feira, a rua, o suor, a pele não tínhamos. Mas juntos não temos dúvida: é a comida o lugar principal do nosso encontro.

É preciso se agarrar ao entendimento que lindamente canta o mestre Emicida  “tudo, tudo, tudo que nós tem é nóis”. 

Nos encontramos nos maços de espinafre, nas fatias de queijo, nos potes de mel, nas garrafas de cerveja, nos alvéolos dos pães e em cada comida produzida por esse coletivo de pessoas que com força manteve suas fogueiras iluminadas. 

Quando sentimos a necessidade de estender a mão, encontramos pontes firmes que possibilitaram as ações da Junta Solidária, com mais de 9.500 marmitas para pessoas em situação de vulnerabilidade.

Um ano de estar atento e forte que nos desperta a compreensão intrínseca de ser coletivo. A lição mais forte que fica é sem dúvida a de que nossas atitudes e escolhas influenciam na vida do outro e assim do todo, do mundo.

Produzir o trabalho em comida, seja arrancando da terra o plantado ou batendo a massa na cozinha industrial. As origens, caminhos, por mais diferentes que sejam, se encontram no galpão de separação de pedidos da Sacola da Junta. Mais de 60 edições aconteceram, levando comida, respeito, amor, força de transformação, união e comida de verdade para casa e mesa de mais de 8 mil pessoas na cidade do Rio de Janeiro. 

É bonito passear no que representa trabalhar em coletivo como na Junta Local. Mais de 130 produtores ajuntados encontrando formas de estar junto e seguir com seus trabalhos e a possibilidade de se acender em fogo e dar sentido a essa escolha.

Equipe da Sacola da Junta, elo de aproximação entre produtores e clientes.

Em muitos momentos nos apoiamos uns nos outros, trocamos medos, alegrias, aflições. Ficamos em casa quando pudemos, pela nossa proteção mas também pelo outro. A ação de se cuidar, se proteger entrega respeito ao próximo. 

Sangramos os mais de 180 mil brasileiros e mais de 1 milhão no mundo, vítimas da Covid-19. Sangramos os assassinatos nas periferias, mercados e prédios por todos os lados. Sangramos a desigualdade, as mulheres vítimas de feminicídio que a cada 9 horas morrem no Brasil. O fogo nas florestas e a queda de cada árvore. Sangramos, somos humanos e entendemos a responsabilidade bordada de benção que é estar vivo. Sangramos pelo descaso humano e institucional a vida. Com cicatrizes profundas e mãos apertadas unidas, bradamos por misericórdia.

Feito raízes nos encontramos em rede forte no subterrâneo. Tivemos menos contato com a luz, mas juntos conectados em teia firme abrimos caminho carregando vida por dentro da terra. Fazemos parte da mesma aldeia.

Daqui do ser(tão) da minha tão amada bocaina, por muitos momentos, me senti como o humano que do alto contemplava a beleza das luzes por encontro em fogueiras na terra. Pode até parecer que as labaredas das queimadas devastadoras, deixaram a terra arrasada. Mas a esperança está nos outros fogos. No fundo, sabemos que sempre será o coletivo de pequenos com todas as suas diferenças, histórias, memórias, bordados, cicatrizes e forças, que melhor alumiam. 

Cada vez que colocamos um prato de comida na mesa, saudamos e fortalecemos essas muitas fogueirinhas que trabalharam, percorreram caminhos e se encontram em força permitindo hoje, uma bela refeição. Por fim, no prato em comida a nossa mais bela e forte união. 

A pandemia nos revelou a urgência de cuidarmos uns dos outros. Nosso tempo clama por zelo e respeito. Agora pode ser uma pandemia, amanhã um calor extremo nos levando a outras doenças e catástrofes. Estamos cara a cara com o tempo, precisamos não só querer enxergar, mas desejar se relacionar com ele. Podemos pensar que a tempestade já passou, mas ao que me parece estamos no olho dela. 

Depois de viver um ano em privação de liberdade, quais serão as reais consequências sistêmicas, humanas, comportamentais na nossa existência como coletivo? 

É difícil saber, mas sem dúvida, todos nós terminamos o ano mais do que nunca desejando o encontro, o abraço e dando muito valor à união.

Que venha 2021, com saúde, vacina, respeito, amor e humanidade. 

Fazemos parte da mesma aldeia.

Foto de capa da vista do morro/bosque de Tatarés por Alice Lutz