Texto da colaboradora Marcela Correia

Em tempos em que o mundo parece ter sido dividido entre esquerda e direita, mortadelas e coxinhas, deboístas e tretistas, a polarização não poderia deixar de aparecer também nas tendências gastronômicas. Uma dicotomia já bastante conhecida, por exemplo, é a entre veganos e onívoros, que surge com mais força entre os veganos e os adeptos da dieta paleo. Mas a oposição que trataremos aqui é a que traz de um lado adeptos do crudivorismo, culinária que preza por receitas cruas, e do outro, adeptos do alimento queimado.

Sim, o alimento propositalmente queimado tem entrado em pauta cada vez mais frequentemente nos cadernos de gastronomia. Recentemente o tema ganhou uma matéria no New York Times e no caderno Paladar do Estadão. Ambos os textos explicam a escolha de alguns chefs de cozinha por queimar um pouco mais que o convencional alguns de seus ingredientes como forma de alcançar notas mais complexas de sabor que não apareceriam de outra maneira. Na matéria do Estadão, a padeira de pães de fermentação natural Flávia Maculan, que participou da edição da Junta Local em São Paulo ano passado, explica que a cor intensa do pão vem da caramelização dos açúcares naturalmente presentes na farinha. Para a padeira, pão de casca branca é um pão que ainda não foi assado completamente. Seu pão é de casca escura, de ricos tons marrons, caramelos, dourados e até mesmo pretos. O contraste é com o miolo, que é macio e repleto de alvéolos, como um bom sourdough de altíssima hidratação. O queimadinho da Flávia nada tem a ver com o seco e torrado – não somente, pelo menos – e passa mais por diferentes texturas, sabor umami e uma infinidade de complexidades que fazem do ato de comê-lo uma experiência prazerosa.

O pesquisador e escritor Michael Pollan é do time que acredita que cozinhar é um ato definidor da raça humana. Digo time porque um número consistente de pensadores compartilha a sua visão e serve de fundamento para sua tese. Pollan cita, por exemplo, o filósofo e antropólogo Lévi-Strauss, que afirma que cozinhar foi uma metáfora para a transformação da natureza crua do humano em uma cultura preparada, “cozida”, por assim dizer. Cita também o antropólogo Richard Wrangham, que acredita que foi o ato de cozinhar que separou os humanos dos primatas, e não a habilidade de desenvolver uma linguagem oral ou de construir ferramentas, pois foi o acesso a alimentos mais fáceis de serem digeridos e mais ricos em nutrientes que desencadeou um aumento e desenvolvimento no cérebro dos nossos ancestrais deslumbrados com o recém-domado fogo. Filosofias à parte, Pollan divide seu livro “Cooked”, que deu origem à série homônima da Netflix, em quatro capítulos relacionados com a produção de comida, um para cada elemento da natureza: fogo, água, ar e terra. Destes, três relacionam-se diretamente com o fogo, exceto o “terra”, que aborda a transformação do alimento cru pela fermentação (mas esse assunto é tão longo que já virou pano para manga para um próximo texto nesse blog!). É, o calor é realmente fundamental para pensadores como Pollan e para esses cozinheiros que estão levando até às últimas consequências o ato de queimar.

Mas como não existe certo e errado nessa vida, o que é fundamental para uns, é completamente dispensável para outros. Os adeptos do crudivorismo alimentam-se majoritária ou completamente de alimentos crus e acreditam que um alimento aquecido a mais de 40º C perde grande parte dos seus nutrientes e enzimas naturais, tornando-se um alimento morto. O ato de cozinhar, neste caso, não passa pelas alterações do fogo, e mantém-se ao ato de combinar ingredientes e, em muitos casos, também fermentá-los. Assim como os alimentos super queimados estão ganhando cada vez mais espaço nos cardápios e cozinhas, aos pratos crudívoros estão sendo dedicados restaurantes, seções do menu de restaurantes (majoritariamente de culinária vegana) e receitas em sites culinários.

Apesar de figurarem como extremos opostos na linha de relação com o fogo, ambas as formas de alimentação prezam por um ideal comum: a comida de verdade. Tanto os cozinheiros (e nesta categoria incluem-se todos aqueles que cozinham e pensam ativamente o ato de comer, seja em casa ou profissionalmente) que procuram sabores mais complexos no chamuscar das brasas, quanto os que buscam harmonia e prazer gastronômico na combinação de alimentos vindos da natureza, estão juntos na militância pelo preparo da comida e pelo distanciamento das que são industrializadas, já prontas, que precisam apenas de um microondas para serem servidas. A relação com o preparo artesanal de ingredientes de verdade abarca esses dois extremos e deixa aqui uma lição: os opostos, às vezes, são mais relacionados do que parecem à primeira vista por estarem unidos na luta contra um inimigo comum.